quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Neo-ruralismo A busca de um novo modo de vida e trabalho: As mudanças no cotidiano dos novos-rurais

MESTRADO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA – Priscilla Bitencourt Freitas

Resumo: Através do resgate de conceitos e de uma dimensão romântica do pensamento de Marx, buscou-se analisar os significados do modo de vida de homens e mulheres que trocaram seus cotidianos e trabalhos urbanos por uma vida no meio rural, praticando, dentre outras atividades, a agricultura. A partir de três narrativas de histórias de vida, procurou-se compreender as motivações dessa busca por uma experiência da Natureza, focando-se os processos de tomada de decisão dos sujeitos, para compreender as possibilidades concretas de reprodução dessa forma de vida e as expectativas dos sujeitos quanto ao futuro próprio e ao futuro da sociedade. Tendo como perspectiva teórica e metodológica a totalidade sócio-histórica enquanto processo aberto, desenvolvendo-se infinitamente, e realizando de maneira gradual e contínua as possibilidades imanentes à humanidade, encarou-se esses modos alternativos de vida em suas potencialidades mais do que em seus limites. Tal caráter otimista do olhar sobre o fenômeno social está relacionado a essa visão histórica aliada à idéia presente na obra do filósofo marxiano Ernst Bloch de que o sonho é o mais intenso elemento da realidade inacabada. Nesse sentido, tentou-se estabelecer uma ponte entre questionamentos colocados por uma redescoberta da Natureza (preocupações ecológicas) e o aparato teórico marxista – especialmente a ontologia marxista – ao ter como pressuposto que por trás da forte inquietação ecológica que impulsiona a escolha desses novos-rurais estão revelados aspectos das relações entre a Natureza, a tecnologia, os poderes econômicos e o poder político em nossa sociedade.

Tivemos o honra de participar, contribuindo com nossa narrativa, deste importante trabalho de Mestrado sobre os “Novos Rurais” em Sociologia Política de Priscilla Bitencourt. Para ler esta dissertação na íntegra baixe o pdf clicando aqui novos_rurais_psop02671

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NEO-RURALISMO

Gian Mario Giuliani

Tudo começou quando se comparou o campo com a cidade. A sociologia rural, em seus primeiros 40 anos de existência, procurou ressaltar o que havia de característico; ou diferente, nas pessoas que viviam no campo. Essas pessoas, postas em confronto com os citadinos, pareciam muito especiais e, para os sociólogos, suas características podiam ser atribuídas ao meio em que viviam (Sorokin, Zimmerman e Galpin, 1930). Produziam de maneira diferente; para . uns, relacionavam-se de forma egoísta e cruel; para outros, eram a própria encarnação da solidariedade. As regras de sua vida não eram escritas nem formais e abstratas. Provinham de normas antigas e, aparentemente, feitas à medida das pessoas. Pareciam viver ao ritmo da natureza, lentamente e com sabedoria ou também pareciam ficar a reboque na história, atrasando seu progresso.

A sociologia rural buscava ressaltar as especificidades da população do campo justamente num período em que este estava começando a sofrer profundas mudanças. A partir dos anos 50, a chamada modernização da agricultura podia ser entendida como a transformação dó velho mundo rural pelo padrão de vida industrial/urbano. Ao tentar acompanhar a maneira somo a organização produtiva e a vida social no campo vinham sendo remodeladas pela indústria e a cidade, a sociologia rural agarrava-se, sempre, mais tenazmente às dimensões resistentes de uma parte da sociedade que parecia destinada à extinção. De fato, as especificidades do campo iam aos poucos, ou rapidamente, se reduzindo. Apareciam somente em algumas poucas dimensões dos processos produtivos que, embora já fortemente atingidos pela nacionalidade capitalista, ainda dependiam em grande parte daquela “natureza” que a cidade já havia esquecido.

Assim, tudo parecia indicar que os modelos industriais e urbanos iriam impor-se de forma rápida e definitiva ao campo, transformando a agricultura em “um ramo a mais da indústria” e os agricultores em produtores e habitantes suburbanos. Esse destino parecia traçado porque a cidade tinha tudo para oferecer ao campo e este nada tinha que pudesse servir à cidade. Seus modelos produtivos e socioculturais podiam continuar interessantes para alguns poucos cultores da história e do folclore, mas nem aos próprios agricultores interessavam mais.

O que até o final da década de 60 parecia uma tendência inelutável, já na década seguinte revelou possibilidades de arrevesamento, produzindo o movimento em sentido contrário, o que os franceses passaram a chamar de “neo-ruralismo”. E um conceito genérico para uma realidade não muito precisa, carregado de símbolos contraditórios e indicando fenômenos que permanecem à margem das dinâmicas predominantes da agricultura atual. Na prática, o neo-ruralismo expressa a idéia de que uma série de valores típicos do velho mundo rural, e que se pensava estarem em vias de extinção, passam por um certo revigoramento e começam a ganhar para si a adesão de pessoas da cidade. A volta às relações diretas com a natureza, a ciclos produtivos e tempo de trabalho mais longos e menos rígidos, ao ar puro e à tranqüilidade, assim como o desejo de relações sociais mais profundas e, sobretudo, da auto-determinação, são as dimensões que atraem pessoas da cidade ao campo; assim como outrora as luzes da cidade atraíram a população do campo.

No Brasil, em vários períodos históricos, ocorreram processos. importantes de deslocamento populacional para o campo. Essas “idas ao campo” estiveram, às vezes, ligadas aos ciclos econômicos de certos produtos de exportação, como a borracha, o algodão, o café, a soja. Outras vezes, foram fomentadas pelas políticas migratórias dos governos, como nos casos da importação de mão-de-obra da Europa destinada ao trabalho nas fazendas de café, ou também nos casos da ocupação das fronteiras do Oeste e da Amazônia. Outras, ainda, são simplesmente migração de retorno, produzidas pela contração do mercado de trabalho urbano. Essas formas de ida ao campo nada têm a ver com o neo-ruralismo, já que o motor desses processos é o velho e tradicional motor da necessidade, da busca dos meios de sobrevivência onde estes estiveram no campo, na cidade, em qualquer canto. O que faz reviver os valores próprios do mundo rural, transformando-os em força critica das formas em que a sociedade inteira se desenvolve, é uma livre escolha bem precisa e particular. Isto é, quando as pessoas decidem não mais morar na cidade e não mais trabalharem profissões urbanas, resolvendo se mudar para o campo e trabalhar na agricultura ou na criação de animais.

Esta forma de ir ao campo, que é a base mais característica do neo-ruralismo, tem no Brasil dimensões completamente desconhecidas, embora seja possível identificar com facilidade, em todas as diferentes regiões do país, um certo número de “novos-rurais”.

No âmbito de nossa pesquisa sobre as formas de reprodução e expansão das unidades produtivas capitalistas no campo do Estado do Rio de Janeiro, deparamo-nos, nos municípios de Nova Friburgo e Teresópolis da região serrana fluminense, com várias situações de vida que nos levaram a refletir sobre a possível difusão de “novos-rurais” no campo brasileiro.

Esta região é próxima da metrópole do Rio de Janeiro e sofre uma forte influência desta, tanto do ponto de vista econômico como social. Por um lado, a produção agrícola e industrial tem como grande mercado a cidade do Rio. Por outro, tradicionalmente, é uma região de turismo, onde é grande o número de residências secundárias de pessoas que normalmente vivem naquela cidade. Os dados dos Censos Agropecuários (FIBGE) revelam que a região, nas últimas décadas, modernizou sua agricultura, reduzindo a área cultivada e aumentando a produção. Dentro do estado, é uma região importante pela produção de alho, cebola, batatinha, hortaliças e frutas, assim como pela criação de caprinos e aves. O município de Nova Friburgo é hoje a bacia leiteira caprina maior do Brasil, produzindo 160 mil litros de leite por mês, a maior parte destinada à fabricação de queijo. Certos indicadores de modernização apontam para avanços superiores à média do estado (número de tratores, caminhões e camionetas), porém outros indicadores revelam estagnação (consumo de energia elétrica), ou até de atraso com relação ao resto do estado (áreas irrigadas, florestas e pastagens plantadas). Entre 1970 e 1985, o pessoal ocupado na agricultura aumenta de 40% nessa região (mais do que a média do estado) e, embora a área dos estabelecimentos dos proprietários quase duplique, 1/4 do número total dos estabelecimentos ainda está nas mãos de parceiros. A relação de parceria, embora em leve retrocesso, é mais importante nessa região do que no resto do estado (FIBGE,1970-1980-985). Há, ainda, um número significativo de grandes propriedades; nas quais se produzem culturas comerciais conduzidas predominantemente em relação de parceria misturada com assalariamento.

Em suma, é uma região onde se mistura uma vocação agrícola de tipo tradicional com outra fortemente ligada aos centros urbanos. Ao mesmo tempo em que se multiplica a produção hortigranjeira, crescem e florescem hotéis-fazenda, nos quais as atividade agropecuária servem, ao mesmo tempo, para satisfazer parte das necessidades do hotel e como espaço de lazer para os hóspedes. A região se apresenta, portanto, como um espaço propicio para que suas necessidades materiais e potencialidades econômicas possam ser repensadas a partir da cidade, já que seu espaço tem se consolidado como alivio ou até alternativa para as condições constrangedoras da vida nas grandes cidades. É nessa perspectiva que, além dos fluxos turísticos temporários, pessoas urbanas deixaram a cidade e suas profissões para se instalarem no campo cultivando ou criando animais. Quem são eles? Vejamos alguns dos bem-sucedidos.

C. G., advogado, 25 anos, filho de um industrial de confecções, estava com o firme propósito de se mudar para a Europa, quando foi convidado por A. C., veterinário, 25 anos também, para juntos criarem escargots. Compraram um sitio de um hectare, importaram 24 dúzias de matrizes da Espanha e, hoje, estão vendendo 400 dúzias dos preciosos moluscos para restaurantes da zona sul do Rio de Janeiro. Importaram vários livros do exterior, se informaram em diferentes faculdades, fizeram cursos rápidos e já perderam mais de mil dúzias de animais em pesquisas genéticas. No estado existem quatro produtores e uma vintena de pequenos criadores que vendem para eles.

V. L. é carioca da zona sul, formado em biologia. Comprou um sítio de 24ha que estava abandonado. Transformou o que era um galinheiro numa estufa, uma pocilga em tanque de confinamento para a criação de rãs-touro, espécie originária dos EUA e Canadá. Começou com 50 casais. Hoje tem 300 casais reprodutores e 13 mil animais para abate que vende para açougues, restaurantes, supermercados e clinicas dietéticas do Rio de Janeiro. Vende também girinos e reprodutores para outros criadores menores. Já foi visitado por biólogos cubanos, interessados na tecnologia de criação, já que naquele pais ainda se capturam rãs nos arrozais. No Brasil, há cerca de 130 criadores, dos quais quase a metade está no Estado do Rio de Janeiro.

M. L. N. cultiva ervas finas em três fazendas a cerca de 120km do Rio. Após ter morado em Paris, comprou uma fazenda de 100ha na qual começou a cultivar couve-flor e alface. Tinha trazido da França algumas sementes cujo cultivo testou num canteiro. Ao mesmo tempo, começou a freqüentar cursos de jardinagem e a importar livros franceses. Hoje tem uma área plantada com ervas finas que soma cerca de 40ha, certamente uma das maiores do mundo, já que na França este é um cultivo de fundo de quintal. M. L. N. demonstra um certo orgulho em afirmar que teve que vencer não somente a resistência de um hábito culinário que conhecia somente orégano, salsa, cebolinha e hortelã, mas também a resistência de seus próprios trabalhadores (hoje cerca de 100), que não compreendiam o sentido de seu trabalho. Trocou correspondência com técnicos do sul do país, pesquisadores da Universidade de Campinas e do laboratório de uma grande empresa do ramo. Atualmente, está construindo um galpão de 140m2 e pretende mecanizar a fase da mistura das ervas e a embalagem.

A. T., ex-gerente de marketing, mudou-se da zona sul do Rio para morarem uma fazenda de ó5ha situada nas montanhas perto de Teresópolis. Com a mulher, também da zona sul do Rio, formada em economia, e com 25 empregados, A. T. cria cabras Toghemborg e frabrica queijo de cabra no melhor estilo francês. Duas vezes por semana desce para o Rio com sua Toyota cheia de queijos para deixá-los em lojas sofisticadas da zona sul do Rio e em empresas tipo Varig.

De início, importou 25 matrizes da França após ter visitado os produtores daquele pais e conversado muito com técnicos do governo francês. Passou 5 anos procurando aperfeiçoar pastagens, animais (hoje cerca de 400) e técnicas de fabricação de queijo. Leu e continua lendo inúmeros livros e revistas especializadas no assunto. Atualmente, fabrica quatro tipos de queijo e pretende, em breve, diversificar a produção para oito tipos diferentes.

H. G., de mais de 60 anos, tem um hotel-fazenda onde cultiva um pouco de hortaliças e cria algumas reses, porcos e pequenos animais para o abastecimento do hotel. O forte da fazenda, porém, é a criação de trutas. H. G. talvez seja nosso personagem emblemático, cuja história e prática poderão nos servir como parâmetro para a avaliação critica dos outros e para as considerações mais abstratas sobre o neo-ruralismo. Nosso personagem chegou na região há cerca de 40 anos. Gosta de contar que lá havia serras e rios, mas nestes não havia peixe. Nos anos 50, tentou povoar de peixes os rios da região, mas acabou desistindo face às práticas predatórias que se desencadearam. Recorda ter arriscado várias vezes a vida tentando impedir a pesca com bombas e outros meios destruidores. Comprou, então, cerca de 800ha de terras montanhosas nas quais passam 3km de rio. Passou alguns anos pressionando, lutando, buscando convencer pessoas influentes de que era preciso declarar a área “reserva ecológica”. Finalmente, conseguiu fundar uma associação que transformou uma área de mais de 25 mil hectares em uma estação ecológica, da qual ele se colocou como maior responsável. Com isso, H. G. pôde começar sua criação de trutas. Hoje considera importante que outros produtores se instalem na região, porém está muito atento ao tipo de pretendentes, admitindo somente pessoas comprometidas com os propósitos da estação ecológica.

Seria possível encher páginas e páginas com pequenas histórias de pessoas que foram ao campo e que estão criando camarões da Malásia, cavalos ou abelhas, ou daqueles que cultivam nozes exóticas, cogumelos, ou dos que fabricam aguardente, compotas, doces e geléias. Mas não é a soma dessas individualidades que pode conferir densidade.sociológica a suas práticas. Cada um destes “novos-rurais” se tomariam interessantes na medida em que fossem capaz de expressar um movimento de forças sociais que induz os indivíduos a determinadas práticas ou que os coloca diante de determinadas escolhas.

Podemos supor que o desinteresse dos estudiosos pelo fenômeno se deve ao fato de nunca este se ter apresentado socialmente como problema, ou nunca ter produzido relações conflitivas, ou mais simplesmente por aparecer como um fenômeno restrito à esfera individual. Porém, o fato de nascer das definições existenciais dos indivíduos e de responder a desejos e aspirações mais do que à necessidade, .não priva o fenômeno de suas qualidades sociais. Ao contrário, tais formas de “ida ao campo” poderiam apontar para formas organizativas novas com características e limites a serem descobertos e definidos.

Já que o tema no Brasil nunca foi abordado, enquanto em alguns países da Europa, e principalmente na França, é discutido por vários autores, trataremos de refletir sobre o fenômeno brasileiro, a partir das idéias que sustentam as análises do neo-ruralismo na França. O procedimento pode apresentar debilidades metodológicas, mas, tratando-se de uma primeira abordagem, é o único que nos permite delinear pelo menos os contornos de uma problemática que, através da comparação, pode revelar aspectos interessantes.

Ao tratar do neo-ruralismo, os autores franceses pretendem apontar para um fenômeno capaz de expressar dimensões criticas, ou de ruptura, com relação aos valores predominantes na mentalidade “moderno-desenvolvimentista” imposta pelos modelos industriais-urbanos e, ao mesmo tempo, capaz de propor uma visão do campo como espaço que deve ser reconsiderado e reavaliado mais além da já desgastada oposição “tradicional/moderno”.

A “nostalgia pelo rústico” é analisada na França como resultado de um processo de profundas transformações no campo e, longe de ser abordada simplesmente como urna aglomeração de concepções reacionárias da vida social, é vista corno uma possível superação dos estereótipos ligados aos produtores rurais e a seus métodos produtivos.

H. Nallet e C. Servolin (1983) apontam com clareza como tais estereótipos estão presos entre os termos dicotômicos “tradicional-atrasado” e “industrial-moderno”. De um lado, a imagem estereotipada do camponês com suas características tradicionais e contraditórias; em certos aspectos, seria um ser grosseiro, avarento, fechado em sua propriedade e cujo voto os candidatos eleitorais acabam tendo que comprar; em outros, seria o pai fundador da nação, o depositário da virtude e da raça, aquele que vive em harmonia com a natureza. Seria também o último homem livre, aquele que possui o saber autêntico, o único que ainda não pôde ser capturado pelas instituições da cidade e da sociedade de consumo. De outro, a imagem estereotipada que apresenta a produção agrícola como estando em constante degradação: aves químicas, carnes a base de hormônios, maçãs industriais que parecem feitas em linha de montagem.

Na visão modernizante as duas faces do camponês, presentes por vezes até na mesma pessoa, acabam por representá-lo na sociedade moderna como o “outro”, o “antiurbano”, o “antioperário”. Nesse sentido, a generalização da produção alimentarem grande escala, apesar dos inconvenientes relativos à qualidade dos produtos, na mesma visão, acabaria tendo seu mérito: a marcha inelutável do progresso, ainda que piorando a qualidade até mesmo dos frangos, faria desaparecer aquele personagem estranho e inquietaste que é o camponês.

Aparentemente, a visão modernizaste teria vencido o elemento mais resistente da sociedade moderna e derrotado definitivamente as tradições. Só aparentemente, porque, se sairmos dessa simplificação dualista, poderemos perceber fenômenos novos é contraditórios. Vejamos como os autores franceses abordam a complexidade da questão.

A França, assim como outros países da Europa, após a Segunda Guerra, lançou-se à modernização da agricultura, tanto para acompanhar o acelerado desenvolvimento industrial, como também para compensar as perdas sofridas com a descolonização. Neste processo, uma parte importante do contingente de mão-de-obra do setor agrícola foi para a cidade e engrossou as fileiras dos assalariados urbano-industriais. A população ativa na agricultura passou de 5 milhões (28% da população ativa total), em 1954, para 2 milhões (8%) em 1979 (Nallet e Servolin, 1983).

Para Eizner e Hervieu (1979), o modelo de desenvolvimento francês dos anos 50 e 60, ao se manifestar fortemente concentrador, acabou evidenciando suas dimensões problemáticas. O gigantismo industrial e a forte concentração urbana rapidamente ampliaram as dimensões dos conflitos de classe e estimularam as campanhas por aumento de salário, o que tornou problemática a gestão da mão-de-obra. Tomou corpo o projeto de “descentralização” das grandes fábricas e de seu deslocamento para “o campo” (província, interior).

As experiências ocorridas nos anos 60, período em que um terço das novas instalações industriais se transferiu para a província, mostraram que ainda se podia buscar mão-de-obra abundante e dócil fora dos centros urbanos. A descentralização permitia incorporar uma série de elementos sociais favoráveis à rentabilidade das empresas e até então pouco explorados.

Em primeiro lugar, quebrava o gigantismo da população operária minando seriamente sua força política. Em segundo lugar, ao levar as fábricas ao campo, “produzia” operários que não mais precisavam deixar completamente suas atividades anteriores, sendo que a possibilidade da dupla atividade tornava o preço do trabalho ainda mais barato. Em terceiro lugar, havia uma integração mais orgânica entre fábrica e trabalhadores,. já que estes podiam manter uma certa continuidade com sua vida anterior, conservando suas relações familiares e sociais. Em suma, a descentralização valorizava o campo, permitia continuidade para seus investimentos e fazia com que as pessoas permanecessem em seus lugares de origem. Com isso, a descentralização trazia vantagens também para os centros urbanos, reduzindo o congestionamento e a poluição.

Para Berger e Rouzier (1977) o processo da descentralização leva a uma nova fase da relação campo-cidade: da concentração e dominação urbana passa-se para a “difusão urbana como elemento de integração espacial”. Nos anos 70, as áreas rurais atraem não somente a produção industrial, mas também o turismo: O turismo rural (agroturismo), ou o campo como lazer, já havia demonstrado ter grande potencialidade econômica e ser uma área de interessantes estudos sociológicos.

Farcy e Gunsbourg (1967), estudando formas diferentes de agroturismo na França, na Suíça e nos EUA, sublinharam que este tipo de lazer tem provocado mudanças no comportamento dos moradores tanto das cidades quanto do campo. No mesmo período começam a tomar corpo fluxos migratórios contrários. Muitas famílias deixam os grandes centros urbanos e se instalam no interior, mais barato e mais tranqüilo, abandonando suas atividades urbanas para se tornarem agricultores ou criadores. Esse movimento de ida para o campo não é somente incentivado pela descentralização industrial, mas também por uma política rural que facilita o acesso à terra (1).

Nos anos 80 foi possível formular um primeiro balanço, no qual não somente aparece um “campo” estruturalmente modificado, como também surgem aspectos de uma nova cultura rural que absorve valores urbanos fundamentais:

Eizner e Decourt (1983), sintetizando os debates ocorridos durante os “Etats Généraux du Dévèloppement Agricole” (2), mostram que as “condições de trabalho” já ocupam o centro das preocupações dos agricultores franceses. O que eles mais querem é diminuir o tempo de trabalho, o estresse nervoso e a angústia do endividamento, reivindicando tempo de lazer, de férias e, como eles dizem, tempo de vida. Após o esforço modernizante dos anos 60 e 70, os produtores querem agora sistemas produtivos mais razoáveis, menos onerosos em investimentos e trabalho, e que não hajam corridas loucas e desenfreadas para o aumento da produtividade. Produzir sim, mas sob a condição de manter o domínio de trabalho. Em suma, o que eles querem é uma agricultura viável, mas também vivível. Reivindicações de tal natureza indicam que se produziram mudanças profundas no campo e que este já se tornou uma espécie de “mundo novo”.

Um grupo de pesquisadores do CNRS (Centre National de Ia Recherche Scientifique) estudou durante vários anos as mudanças ocorridas nos campos da Bretanha, principalmente, em áreas fortemente afetadas pela expansão da produção avícola em grande escala. Providence (1982), fala de “desterritorialização” como sendo o processo pelo qual avicultores, até então quase autárquicos, se vêem envolvidos na produção mercantil através de contratos. A terra e os homens passam a ser enquadrados por um setor industrial a montante (fertilizantes, rações, produtos fitossanitários, equipamentos) e a juzante (comercialização e transformação do produto). Essa mudança não afeta apenas a maneira de produzir e as relações de produção, mas atinge irremediavelmente a maneira de viver e outras relações sociais. O que o sociólogo chama de “desterritorialização” equivale ao que na cabeça da população do campo é vivido como uma “deterioração” de suas antigas relações sociais. Ao mesmo tempo, porém, essa mudança impõe uma nova maneira de “habitar”, uma nova maneira de investir, material e simbolicamente, na terra, cria um novo “território social”; a “desterritorialização”, enfim, é também uma “reterritorialização”.

Assim, enquanto dimensões próprias de uma cultura urbana – como, por exemplo, a divisão entre “tempo produtivo” e “tempo livre” – incorporam-se à auto-avaliação dos agricultores de sua situação, dimensões próprias de uma cultura do campo levam-nos, por outro lado, a questionar duramente as condições devida nas grandes cidades. Perguntou-se, por exemplo, a um grupo de secundaristas de uma pequena cidade da Bretanha, afetada por esta “reterritorialização”, sé eles prefeririam morar numa cidade grande. A maioria respondeu que a vida rural era muito melhor: não havia poluição, barulho, carros, fábricas e não se vivia em ambientes fechados. O rural era a natureza, com pássaros, animais, campos, bosques, onde se podia andar de- bicicleta, jogar futebol, pescar, caçar e onde havia tempo para viver.

É esta, talvez, a dimensão mais evidente e a racionalização primeira do neo-ruralismo: valorizar o espaço cotidiano; tornando-o suportável, desejável, consumível. De fato, essa é a primeira justificativa oferecida pelos “novos-rurais”, tanto franceses como brasileiros, à sua decisão de mudar para o campo. Todos eles,, ao tecer elogios incondicionais às qualidades da vida agreste, definem como degradadas e degradantes as condições de vida nas cidades.

É novamente Providence quem melhor esclarece as dimensões paradoxais desse processo. Para esse autor, o duplo movimento “desterritorialização-reterritorialização” subverte o antigo modo de “habitar”, que é também o modo de produzir da sociedade rural tradicional baseada na pequena produção autárquica não-mecanizada. Por outro lado, o movimento institui novas relações sociais de produção que passam a ser legitimadas por uma simbologia “nova” da terra,. simbologia que, de fato, é tomada de empréstimo ao antigo modo de “habitar” e produzir. Ao fazer isso, esse duplo movimento, estaria paradoxalmente realizando o ideal supremo, e nunca realizado, em uma sociedade capitalista: que cada um possa ter um lugar e um espaço social com os quais seja possível uma identificação satisfatória, isto é, realizar o inverso da “atopia” e da “anomia”, as mais típicas invenções do capitalismo.

Nessa perspectiva, “o local” ou “regional” deixam de ser identificados como limites constrangedores cuja superação é insistentemente incentivada pela ideologia homogeneizadora e modernizante. O “local” ou o “regional” se tornam então perfis de uma identidade que deve ser modelada, definida e realizada (3).

Assim, para Providente, estaríamos frente a uma situação paradoxal: o modo de produzir arcaico dos camponeses gera nos atores motivações e expectativas de um modelo ideológico moderno, enquanto o modo de produzir moderno gera motivações e expectativas “neo-ruralistas” que, no fundo, tem suas raízes no modelo ideológico arcaico pré-capitalista.

O autor finaliza indagando se o modelo ideológico produzido nesse processo e que, apoiando-se no passado, recusa o presente, não poderia conter elementos críticos importantes. Do mesmo modo, Eizner, (1978) analisa o neo-ruralismo como uma forma de protesto, ainda que canalizado e recuperado. Um protesto contra o trabalho parcelado, o gigantismo urbano, a degradação das relações sociais, contra a feiúra e a uniformidade do ambiente físico das cidades. É contra tudo isso que se justifica a volta ao passado e à natureza e se manifesta a nostalgia de formas de viver perdidas, nostalgia esta que é, ao mesmo tempo, condenação da forma de vida “dominada”.

Portanto, outra dimensão importante do neo-ruralismo é a esfera da soberania individual, que volta a ganhar espaço. A vida urbana e industrial construiu redes de condicionamento e de controle social sempre mais fechadas, onde uma suposta autonomia individual se expressa quase exclusivamente pelo desejo de consumo e de atividades de lazer. O neo-ruralismo estende a esfera da individualidade a uma vasta gama de atividades que não têm necessariamente objetivos econômicos prioritários e cuja finalidade pode ser simplesmente uma prática prazerosa. Esta dimensão do “prazer em fazer” ás coisas é que orienta a escolha de novas atividades, de novas relações sociais, de novas formas de sociabilidade e de lazer e de novas formas de identificação.

Em síntese, o neo-ruralismo se caracteriza por dimensões afirmativas, como a valorização da natureza e da vida cotidiana, a busca de autodeterminação, do trabalho como prazer, da integralização do tempo e das relações sociais. E, ainda, como o outro lado da mesma moeda, se caracteriza por dimensões negativas: a recusa do espaço e do tempo da indústria, a critica à ditadura dos papéis produtivos típicos da cidade que dirigem os indivíduos a labirintos de frustrantes relações secundárias. Mas, observemos nossos “novos-rurais” brasileiros à luz das dimensões discutidas pelos franceses.

Há importantes diferenças entre os “novos -rurais” franceses e brasileiros, certamente devidas aos diferentes processos históricos nos quais a agricultura tem se desenvolvido nos dois países. O desenvolvimento da agricultura na França, como já observamos anteriormente, em primeiro lugar reduz drasticamente a população ocupada neste setor. Em segundo lugar, mantém solidamente o caráter familiar da produção, de tal forma que, hoje, 43% da população ativa na agricultura são constituídos pelos próprios agricultores, 28% pelos cônjuges, 21 % por seus filhos e somente 8% por trabalhadores assalariados (Nallet e Servolin, 1983).

No Brasil, entre 1950 e 1980, a população ocupada na agricultura aumenta de pouco mais de 10 milhões para mais de 21 milhões, dos quais mais de um quarto ainda é constituído de trabalhadores assalariados. Isto é, no Brasil há uma moderna produção capitalista com abundante uso de trabalho vivo. Os “novos-rurais” brasileiros podem expressar as mesmas motivações de seus correspondentes franceses, porém as estruturas em que respectivamente se inserem tornam-nos bastante diferentes.

À diferença dos europeus, que vão ao campo reproduzindo o modelo de produção familiar, nossos “novos-rurais” vão ao campo reproduzindo o modelo de produção capitalista. Em seus empreendimentos, a parte fundiária do investimento é necessária, mas não é a mais importante. Os mais vultosos investimentos vão, em geral, para a infra-estrutura (casa, galpões ou armazéns, estábulos, máquinas agrícolas, maquinária para tratamento do produto, veículos leves ou pesados) e para os salários. Ao capital necessário para produzir se deve agregar uma parte para sustentar a produção durante o período inicial, mais ou menos longo, durante o qual ainda não se gera retorno. Por isso, nossos “novos-rurais” pertencem, em geral, a famílias de posse que os ajudam no novo empreendimento. Por serem de famílias ricas, eles têm um nível de instrução alto e várias experiências de viagens ao exterior. Esses dois elementos se revelam fundamentais para suas atividades. Através das viagens ao exterior conhecem produtos novos, apreciam seu consumo e avaliam a possibilidade de sua difusão no Brasil. O alto grau de instrução os coloca em condições de se prepararem tecnicamente para uma atividade nunca exercida antes. Correr livrarias e bibliotecas, fazer cursos ou conversar com técnicos especialistas, manter correspondência com outros produtores nacionais ou estrangeiros, são caminhos que todos eles trilharam no processo de se tornarem os produtores especializados que atualmente são.

Outro aspecto importante se refere ao mercado consumidor. Este é analisado nos seus mínimos detalhes antes mesmo de se pensar na organização produtiva. Para os futuros “novos-rurais”, uma vez descoberto o produto, não é difícil traçar um perfil de seus potenciais consumidores. Basta-lhes pensar em pessoas como eles próprios, em seus familiares e amigos, nos amigos dos amigos, no mundo que eles bem conhecem porque sempre o freqüentaram. Afinal, quem tem bom gosto pode apreciar coisas diferentes e quem tem dinheiro se dispõe a gastá-lo para satisfazer seu bom gosto. Somente se trata de saber motivar, convencer os potenciais consumidores de que comprar tais produtos é desejável, não somente em nome das boas lembranças de viagens passadas, mas de um estilo de consumo não massificado e não industrializado que os dotaria de uma identidade estamental moderna.

Assim, uma dimensão importante que poderá abrir as portas ao sucesso do futuro empreendimento; ou fadá-lo ao fracasso, é a quantidade e a qualidade das relações sociais do futuro produtor. Se este for membro reconhecido de um certo círculo de relações, os consumidores terão a garantia de que o produto não somente apresentará as qualidades esperadas, mas, também, que seu consumo fortalecerá o próprio círculo.

A distância entre a imagem de um produto que conheceram em contextos muito diferentes e as condições reais de sua produção em nosso pais, traz muitos percalços aos “novos-rurais”. Começam a produção seguindo à risca os manuais importados, sem conseguir, porém, os resultados esperados. Tentam então experiências, discutem com técnicos e produtores nacionais, modificam e adaptam a produção às condições possíveis, de tal forma que são necessários alguns anos de pesquisa antes de se definir a maneira de produzir ou de tratar o produto para adequá-lo ao mercado. Sem o capital suficiente para manter a máquina produtiva e sem uma forte dose de paciência e de determinação pessoais, se torna impossível alcançar o sucesso esperado.

Paciência e determinação são também indispensáveis na seleção e gestão da mão-de-obra necessária para o empreendimento. É bem verdade que o titular da empresa também trabalha nela, às vezes ao lado do cônjuge. Ele é o organizador e o depositário do saber técnico, aquele que cuida das operações mais delicadas e que comercializa os produtos, mas nada poderia fazer sem um certo número de assalariados. Sua organização produtiva, longe de ser familiar como a dos franceses, é decididamente capitalista, porém com certas ambigüidades. Ao falar de suas atividades, os “novos-rurais” expressam uma satisfação com o fato de terem construído as condições de uma vida mais serena, mais harmoniosa, na qual o tempo de trabalho não contrasta com o tempo livre. Tempo de lazer e tempo produtivo se confundem, porque as atividades desempenhadas são fruto de uma escolha. É explícito o prazer de seu exercício, porque obriga a uma contínua superação de dificuldades e barreiras, proporcionando assim uma aprendizagem e um crescimento contínuo. O trabalho não é visto como alienado nem alienante; ele é percebido como personificante, construtivo e enriquecedor. É uma pena que seus trabalhadores não consigam entender isso! Nesse mundo idílico “os empregados” parecem ser o único e verdadeiro problema que os “novos-rurais” enfrentam. Todos eles afirmam que seus trabalhadores resistem em adotar as novas técnicas ou não têm cultura suficiente para assimilá-las. Além disso, os “empregados” nunca demonstram ter a paciência e a determinação indispensáveis para enfrentar as constantes dificuldades, problemas e imprevistos. Eles querem um horário de trabalho “frouxo” e um salário de quem mora na cidade. Aliás, sempre estão sonhando com a cidade e na primeira oportunidade deixam tudo ê se transferem para aquele mundo horrível, cheio de poluição e neurose. Eles ainda não entendem as virtudes é os benefícios do campo.

O que haveria de novo nas considerações que os “novos-rurais” fazem a respeito de seus trabalhadores? Absolutamente nada! Simplesmente reproduzem a arcaica e surrada ideologia burguesa que faz de conta que o que é bom para os empresários deve ser bom para toda a sociedade, com um agravante no nosso caso: os “novos-rurais” exigem de seus trabalhadores uma “racionalidade urbana” na organização do trabalho e no processo produtivo, porém lhes impõem condições rurais “tradicionais” quando se trata de salário, moradia ou jornada de trabalho. Não compreendem (ou não querem compreender) por que a anomia e a atopia que eles teriam superado, ainda estaria ofuscando a mente de seus trabalhadores.

Assim é no plano pessoal que nossos “novos-rurais” podem exibir seus troféus: o de terem vencido a anomia, o de terem realizado a aspiração fourieriana do “trabalho com prazer” e o de terem alcançado o máximo socialmente possível daquela “soberania individual”, cuja perda a população urbana tanto lamenta.

Mas no plano social estariam eles contribuindo para alguma mudança? Estariam promovendo uma “reterritorialização” no sentido que os franceses apontam? Sua inserção no campo estaria, de alguma maneira, mudando as formas de “habitá-lo”? Sua organização da produção e da vida cotidiana estariam configurando modelos alternativos, que contestam ao mesmo tempo a sufocante vida urbana e o tradicionalismo estagnante da vida rural? O território (local) de sua inserção, é objeto de reflexão, ou de ação, no sentido de estender as preocupações que os levaram a escolher o campo em lugar da cidade? Em suma, poderiam ser veículos de uma nova moral produtiva e associativa?

Em geral, a inserção dos “novos-rurais” não parece provocar grandes mudanças no local. A introdução repentina de um importante volume de tecnologia moderna, assim como os contatos diretos e freqüentes com a grande cidade, coloca-os imediatamente no centro da atenção. A sua maneira urbana de ser, de consumir, de se relacionar, começando pela construção da moradia, em geral muito superior ao padrão de conforto médio da área, torna-os pessoas distintas. Sua influência, porém, não parece passar de “objeto de imitação dentro do possível”, às vezes como personagens de novelas televisivas, capazes de estimular desejos mais que emulação. As relações com os vizinhos são mantidas no nível do mínimo indispensável, sendo que os códigos sociais do meio são apreendidos para que possa haver uma adaptação ao “local”, na medida em que as circunstâncias tornem isso conveniente. Portanto; embora a inserção seja repentina, a assimilação é muito lenta. Durante um tempo relativamente longo, funcionam formas de existências paralelas, sem que o território seja significativamente afetado pela “nova inserção”.

Seria muito ousado pensar em concluir uma reflexão que apenas se esboça. De qualquer modo, arriscamos um balanço das observações feitas no intuito de abrir caminhos de investigação.

O desenvolvimento industrial e o crescimento urbano têm produzido, também no Brasil, um crescente sentimento de insatisfação com as condições de vida nos grandes centros, insatisfação esta que, em parte, passa a alimentar o desejo de relações mais diretas com a natureza. Como em todos os países industrializados, durante as décadas de 1970 e 1980 assistimos ao fortalecimento dos movimentos ecológicos, uns mais preocupados com a preservação, outros com á renovação dos recursos naturais da vida e do lazer (Viola, 1987), porém, no conjunto, revalorizando a natureza como sistema que o homem tem que aprender a conhecer e a respeitar. A nostalgia pelo “rústico”, entendido como modelo de vida, é uma expressão diversa do mesmo sentimento de recusa das formas atuais de desenvolvimento dos espaços industriais e urbanos, formas vividas como inexoráveis fagócitos das células da vida social, animal e vegetal.

De qualquer modo, não há uma correspondência automática entre ecologismo e neo-ruralismo. Os “novos-rurais” aqui descritos buscam em geral a satisfação de aspirações individuais; mesmo que de suas práticas resulte um casamento entre valores antigos do mundo rural (autodeterminação, natureza, tranqüilidade, simplificação das relações sociais) e valores modernos da cidade (racionalidade produtiva, especialização, renovação tecnológica), nossos protagonistas não demonstram grande interesse em uma nova moral produtiva e associativa. Nem mesmo do ponto de vista capitalista são capazes de inovar qualitativamente qualquer aspecto das relações sociais. No máximo, poderiam ser considerados modernizadores do campo.

Porém, nem todos os “novos-rurais” se assemelham a simples capitalistas que se cansaram da cidade. H. G., cuja história havíamos anunciado ser emblemática nesse contexto, torna-se uma pessoa substancialmente diferente por ser capaz de conjugar ecologismo com neo-ruralismo. Já no começo de suas atividades, H. G. pensava na maneira de aproveitar todas as coisas boas que a natureza local proporcionava. E isto se deu não nos anos 80, quando o ecologismo já é grande moda, mas nos anos 50, quando era dominante a ideologia contrária, modernizante, que impõe a transformação e submissão da natureza.

A grande batalha de H. G. para conservar a natureza não pode ser confundida com puro idealismo. Quando lutava contra os depredadores dos peixes que tinha posto nos rios, estava também defendendo seu patrimônio em formação, o qual dependia das boas condições ecológicas da região. Isso quer dizer que nosso protagonista estaria tentando privatizar a natureza que, por definição, é pública? Sem dúvida! Porém, do ponto de vista da relação estrutura-indivíduo, sua prática mostra que podem existir formas de acumulação de riqueza privada que não somente conservam e reproduzem a natureza, mas que levam ao desenvolvimento de formas sociais de uso (utilização lúdico-contemplativa da natureza, agroturismo).

Resta considerar algumas questões que dizem respeito às estratégias de ocupação do campo e, portanto, a certos aspectos qualitativos do desenvolvimento social. H. G. torna-se rapidamente um habitante “da região”, porque com ela se identifica e porque se sente capaz de elaborar propostas para sua organização. Essa atitude é bastante extraordinária se confrontada com aquela mais comum que aposta nos rendimentos imediatos e, portanto, torna-se quase sempre predatória. H. G., contrariamente ao capitalismo agrário brasileiro, sempre demonstrou ter projetos estratégicos que extrapolam os limites de seus empreendimentos. Pensa no desenvolvimento de sua empresa, porém no âmbito de um espaço desejável e ao mesmo tempo imprescindível para o próprio sucesso da empresa, que passa a depender de uma natureza conservada e do prazer dos outros em lidar com ela.

Evidentemente as realizações de H. G. são bastante especiais, assim como as pessoas que podem usufruir delas são bastante selecionadas. Pela análise de Viola (1987), talvez possamos considerar nosso protagonista como um “ecocapitalista”, pertencente a uma franja marginal dos movimentos ecológicos, porém, como sustenta o autor, bastante poderosa, por manter sólidas ligações com políticos e agências estatais. Com efeito, uma dimensão importante do sucesso da empresa e do projeto mais geral reside na capacidade do empresário de apoiar-se numa série de relações sociais que possam viabilizar uma e outra coisa. Ele soube combinar pessoas influentes com pessoas capazes de se identificar com o projeto mais geral da estação ecológica. Praticamente selecionou seus vizinhos e membros dessa associação e, graças a eles, conseguiu manter afastadas todas as tentativas de modificação do ambiente. Paradoxalmente, a perspectiva da conservação socializante da natureza e da criação de uma identificação territorial passa, nesse caso, por um processo radical de exclusão social.

Assim, também essa dimensão nova do rural aparece restrita a uma minoria rica. A contradição torna-se evidente se compararmos o ecologismo de H. G: com o dos seringueiros de Xapuri. Todos procuram defender a natureza como fonte de satisfação das necessidades, porém, enquanto o primeiro encontra apoio nos políticos do estado e nas pessoas influentes da região, os seringueiros encontram os pistoleiros enviados por fazendeiros e madeireiras para matar suas lideranças.

Na imaginação do mestre da sociologia rural francesa, Henri Mendras, o personagem Alexis, em maio do ano de 2007, proveniente da Ásia Central, chega ao Pais da Utopia Rústica (PUR), situado no Sudeste da França, em busca do segredo que permite a urna sociedade rural viver em plenitude dentro de urna sociedade urbano-industrial. Alexis pergunta ao prefeito do PUR se a sociedade que ele governa é viável e se é possível se inspirarem seu modelo. O prefeito responde: “Vocês podem se inspirar no PUR se forem ricos e aceitarem viver como pobres” (Mendras, 1979, p. 150).

(Recebido para publicação em agosto de 1990)

Um agradecimento especial a Mauro Ventura, cuja reportagem na Revista Domingo inspirou este trabalho e cujas informações facilitaram a elaboração do mesmo.

NOTAS

1- Em 1960 foi fundada a SCAFR (Société Centrale d’Aménagement Foncier Rural) com o objetivo de criar as SAFERs (Société d’Aménagement Foncier et Établissement Rural). Essas sociedades, que não pertencem ao estado mas às organizações profissionais (câmaras da agricultura, federações sindicais, caixas mutualistas e de crédito), têm como objetivos, melhorar as estruturas agrárias, aumentar as áreas dos minifúndios, facilitar a instalação de agricultores em terras não aproveitadas e controlar o mercado fundiário, limitando o peso que representa a compra de terra para os agricultores. As SAFERs compram imóveis suais postos à venda pelos proprietários para repassá-los a agricultores que os solicitam. Antes de repassar a terra podem realizar benfeitorias como: construção de casas rurais, instalações fixas, preparação de solo para o cultivo etc. As SAFERs aumentaram anualmente o volume de suas transações: em 1980 compraram 102.924ha de terra (entre três e quatro mil estabelecimentos agrícolas), representando tal volume 1/5 de todas as transações do mercado fundiário naquele ano.

2 – Grande reunião convocada durante a primeira fase do governo socialista de 1981, na qual representantes das categorias profissionais da agricultura, dos sindicatos e do governo, discutiram os problemas do setor.

3 – Duas ressalvas devem ser feitas a estie respeito. Em primeiro lugar, se deve esclarecer que o caso estudado pelos autores é uma área da Bretanha, isto é, uma região que na França apresenta características culturais historicamente marcadas e onde sempre existiram movimentos de afirmação da identidade bretonne, movimentos que até há poucos anos proporcionaram grandes agitações independentistas. Isso, porém, não invalida as afirmações dos autores, já que uma identidade localista, embora com características menos dramáticas do que na Bretanha, reaparece em toda a França e em outros países. Na Itália, por exemplo, nos últimos anos, tal identidade chega até a assumir uma forma de organização política através das ligas regionais ou provinciais. Em segundo lugar, se deve observar que na Europa, a “identidade local”, como reação à homogeneização industrial-urbana, toma corpo somente depois que os problemas materiais vêm sendo resolvidos, isto é, somente quando a população do interior alcança um nível de vida igual ao das cidades, perdendo assim o estigma de cidadãos de segunda classe.


BIBLIOGRAFIA

BERGER, A. e ROUZIER, J. (1977), Ville et Campagne: La Fin d’un Dualisme. Paris, Economica.

DE FARCY, P. H. e DE GUNSBOURG, P (1967), Turisme et Milieu Rural. Un Debouché Rentable pour 1′Agriculture. Paris, Flammarion.